Deixar ir
Naquele jardim há uma árvore, imponente, viçosa, como os seus ramos verdes, como se fossem longos braços estendidos, agradecendo ao sol pela dádiva da vida. Faz porto de abrigo para os passarinhos que ali cochicham animadamente, em rituais de sedução e de acasalamento. Faz sombra para os caminhantes que ali descansam antes de prosseguirem as suas jornadas. Mas é no aconchego da noite que é cúmplice e conhecedora dos mais íntimos segredos, onde os amantes ali se encontram às escondidas, trocando juras de amor e consumando paixões ardentes.
Mas o outono chega de mansinho. Muitas aves arrumam as suas trouxas e fazem-se à vida, a coruja-do-mato dá o alerta de que a sua época chegou. A aragem amena torna-se aos poucos uma forte brisa fazendo arrepiar os mais incautos. Aquela imponente árvore sabe que chegou a hora de deixar ir. As suas outrora viçosas folhas, carregam agora o peso das memórias, das histórias ouvidas, vividas e partilhadas. Sabem que se tornará um fardo demasiado pesado para fazer frente às adversidades da natureza. Pouco a pouco as folhas caem e as primeiras folhas a caírem são aquelas que apenas continham zumbidos, histórias aleatórias trazidas pelo vento. Seguidamente caem as folhas do diz que diz, das cusquices perdidas no tempo. E é desta forma que aos poucos, aqueles longos ramos vão ficando despidos. Caem as folhas das amarguras da vida, dos amores desencontrados, das paixões antigas, dos amigos que se afastaram, das dificuldades passadas, das lágrimas caídas compulsivamente, da cólera que se apoderou nos momentos de fraqueza.
Algumas folhas teimam em não querer cair, aquelas que carregam as boas recordações, dos dias de sol que pareciam intermináveis, dos risos sinceros, dos abraços apertados, dos magníficos luares… ai os luares (suspiros), mas também essas, acabam por cair. Nem mesmo as folhas que ficaram na saudade, nem as dos sonhos vívidos ou por viver, conseguem resistir, todas elas caem…
Já não se escondem os amantes debaixo de uma árvore despida, já não serve de proteção para o sol que agora parece hibernar por longos períodos. Já não são abrigo para os atrevidos pássaros, já não guardam em si todos os segredos do universo, nem embelezam a paisagem com as suas cores garridas. É apenas um tronco abandonado à sua sorte. Assim pensam aqueles que assistem melancólicos à passagem dos dias, sentados num qualquer banco frio de jardim. Aquele outrora imponente e viçosa árvore, apenas se libertou de todo o peso que já não necessita mais de carregar. O mundo em redor, apenas a vê nua, de alma despida, sem essência, quase uma aberração escultural. Mas ela possui o conhecimento dos universos, os segredos da passagem do tempo, já vivenciou os ciclos infinitos da natureza. Ela sabe que por mais longo que seja o inverno, a primavera chegará novamente, e tudo voltará a resplandecer de vida, de novas histórias, de novas memórias. Ela sabe que dos seus longos braços nascerão novas folhagens, que os passarinhos farão novamente ali o seu poiso, que dará abrigo a novos e velhos amantes, e aqueles que a ignoraram, voltarão a olhar maravilhados para o seu esplendor, resplandecendo o seu encantamento por todos a que a usufruem.
Ela sabe que há uma altura em que é preciso deixar ir para poder de novo renascer. No entanto, não mudou a sua essência nem deixou cair os seus longos braços, mateve-os junto a si, são parte de si. Sabe que durante esse tempo haverá enormes mudanças no universo, mas ela continuará ali, onde sempre esteve, mesmo que muitos não se apercebam disso.